Políticos assim, nem reinventados

O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar. (...) Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra (...) O que se há-de fazer ao sal que não salga? (...) Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer é lançá-lo fora como inútil (...)
Sermão de Santo António aos Peixes
Padre António Vieira


Há dias, um periódico regional publicou nas suas páginas um artigo de reflexão intitulado "Reinventem-se os políticos", da autoria de um aprendiz de "pregador", responsável político local - Paulo Caldas de seu nome. O texto tecia considerandos sobre a própria classe política. Atitude curiosa e pouco usual.
Até estou de acordo com parte (apenas parte) do diagnóstico e das propostas que apresenta quase todas, aliás, do senso comum. Mas por que será que, neste caso, como em tantos outros, o sal não salga?... Creio que a resposta se encontra, algures, nas sábias palavras do Padre António Vieira, acima citadas.
Confesso humildemente que não estou a preparar nenhum ensaio sobre o poder local, como Paulo Caldas faz questão de anunciar ao mundo, mas pretendo partilhar com o leitor o que me parece que deve ser um político da República em Democracia.
Enfermamos de um vício sistémico do regime, que é a alternância política viciante e viciada entre os dois partidos do centrão, cujos resultados estão à vista. Depois de muitos anos de crise, veio a crise e, a seguir, virá a crise. Enquanto isso, mantém-se o sentimento de impunidade por parte dos políticos em desempenho de funções. Não raro, a nossa imprensa denuncia casos que chocam o comum cidadão: reformas escandalosas após meia dúzia de meses num qualquer cargo de direcção ligado ao Estado; saídas, quase directas, de um qualquer ministério para empresas dentro do mesmo "méttier"; concursos públicos com os resultados já decididos à partida; adjudicações por ajuste directo e com pagamento fraccionado; favorecimento de familiares; acumulação de benesses e de subvenções à custa do erário público... Enfim, o prodígio da imaginação ao serviço da apropriação privada dos bens públicos.
É este o triste cenário criado pela tal "alternância sem alternativa" que se tem perpetuado pelos corredores do poder democraticamente instituído.
Importa lembrar que na génese do regime democrático republicano está uma intensa luta contra a monarquia corrupta, qual aristocracia sem norte que se “norteava”, à época, com dinheiros do erário público, quantas vezes à margem das contas oficiais e legais do Estado.
Importa, também, denunciar as actuais “monarquias de interesses”, apelando à ética republicana e aos princípios que parecem apagados dos manuais desta “nova” classe política, sequência dos anos “yupis” do cavaquismo, do êxito individualista fácil e a qualquer preço.
Para os novos "monarcas", só conta o êxito, a esperteza, o oportunismo, o grupo de influência, a clique partidária, os truques malabaristas, a ambição mal disfarçada de chegar a ministro. A honradez, a honestidade, a transparência, o serviço público, o interesse colectivo caíram em desuso. Estes princípios terão que ser, não reinventados, mas repostos por nova gente com projectos sempre actuais de solidariedade, no lugar do assistencialismo, de verdade, no lugar da mentira, de rigor, no lugar da trapalhada, de transparência, no lugar do grupo de interesses.
Vamos por pontos:
1 - A alternância política existente significa mais do mesmo, o que é manifestamente mau;
2 - O poder “pode” corromper, se os políticos forem corruptíveis ou corruptores. Quando o poder é absoluto, corrompe absolutamente;
3 - É um facto a desconfiança dos cidadãos sobre a nossa classe política. Não porque os portugueses são desconfiados, mas porque têm razões de sobra. Basta, por exemplo, passar os olhos pelo relatório do Tribunal de Contas relativo à gestão da Câmara do Cartaxo;
4 - Se a “velha classe política” teve a sua quota parte neste descrédito, a nova está deslumbrada demais pelo poder para fazer um exercício de auto-crítica e análise objectiva do que é verdadeiramente o interesse público;
5 - Só fora dos partidos do centrão é que os portugueses podem procurar verdadeiras alternativas. Foi reagindo contra o rotativismo regenerador/progressista que o republicanismo acabou por impor a sua dinâmica vencedora.
6 - É urgente uma mudança para colocar o País na senda do desenvolvimento sustentado, com transparência, rigor, participação cidadã, justiça, ensino para todos, saúde pública de qualidade, e uma melhor e mais democrática distribuição da riqueza criada.A regionalização é uma condição necessária para o aprofundamento da democracia e para um melhor e mais participado desenvolvimento. A eleição de dirigentes regionais é a única legitimidade republicana aceitável para substituir as actuais CCDR’s.
7 - É indispensável pensarmos numa forma de avaliação dos políticos, que não seja só nos ciclos eleitorais. A revogabilidade dos cargos terá de ser equacionada aquando do não cumprimento dos programas propostos. Eleger um político, hoje, é passar um cheque em branco. Todos nós perdemos já a conta às promessas por cumprir. Uma posição na oposição e outra no governo; uma coisa antes das eleições e o seu contrário após a tomada de posse. A memória é importante.
Nota final: Como “socialista de confiança”, como republicano e como candidato do Bloco de Esquerda à Câmara Municipal do Cartaxo, gostaria de poder contar com adversários políticos que se norteassem por princípios da ética republicana, à prova de qualquer suspeição. Algo bem diferente da "monarquia de interesses" liderada por Paulo Caldas. "Quem faz as instituições são as pessoas", diz o próprio no seu artigo. Bem prega frei Tomás... Políticos assim, nem reinventados! Há muito perderam a substância e a virtude, como o sal que já não salga. O que se lhes há-de fazer?...
Francisco Colaço Candidato do Bloco de Esquerda à Câmara Municipal do Cartaxo
(1)O Sermão de Santo António aos Peixes foi proferido na cidade de São Luís do Maranhão em 1654, na sequência de uma disputa com os colonos portugueses no Brasil.Este sermão (alegórico) foi pregado três dias antes de Padre António Vieira embarcar ocultamente (a furto) para Portugal, para obter uma legislação justa para os índios.